Aos colegas geotécnicos brasileiros: precisamos nos libertar da armadilha da abordagem de risco

25/06/2011 - Aos colegas geotécnicos brasileiros: precisamos nos libertar da armadilha da abordagem de risco

ÁLVARO RODRIGUES DOS SANTOS*

Mergulhado em tensa lida com os recorrentes acontecimentos geológico-geotécnicos de mais uma temporada chuvosa, estou tentando colocar sucintamente no papel algumas reflexões que imagino talvez possam nos ajudar a melhor direcionar nossas atividades técnicas e sociais no contexto desses problemas. Percebo que, com a melhor das intenções, acabamos por cair em uma armadilha tecnológica armada pela inconsequência das administrações públicas no cumprimento de suas obrigações e atribuições de planejamento e ordenamento da expansão urbana. Inconsequência da qual resulta a incontrolável progressão do surgimento de áreas de risco e decorrentes acidentes e tragédias.

Especialmente a partir de meados da década de 1970, a geologia de engenharia e a engenharia geotécnica brasileiras, no contexto conceitual de uma “abordagem preventiva”, iniciaram a produção de um excelente ferramental técnico para as ações de planejamento e regramento técnico do uso do solo, sob a ótica geológica e geotécnica. A Carta Geotécnica se destaca entre essas ferramentas de caráter preventivo e de planejamento. Ela proveria aos administradores públicos as informações necessárias a não ocupar áreas de alta potencialidade natural a eventos geotécnicos potencialmente destrutivos e a utilizar as técnicas mais adequadas para a ocupação de outras áreas naturalmente menos problemáticas.

No entanto, com a aversão que a administração pública brasileiras vem demonstrando à cultura da prevenção e do planejamento urbano, e com a decorrente multiplicação das situações de risco já instalado, os geotécnicos brasileiros foram progressivamente migrando para uma “abordagem corretiva/emergencial de Defesa Civil”. Surgiram assim as Cartas de Risco, os Programas de Defesa Civil, as ações emergenciais de retirada de moradores e instalações em risco, sistemas de monitoramento de escorregamentos, novas alternativas em obras de contenção etc. Essa abordagem de risco tem atendido melhor nossos administradores e políticos, em sua grande maioria sempre muito mais propensos a “torcer para que nada aconteça” e a culpar chuvas, geologia, população ou Deus pelas desgraças eventualmente acontecidas. Se a abordagem de risco se impõe como prioritária aos países onde o risco geológico é totalmente natural, vulcanismo, terremotos, tsunamis etc., ou seja, independe da vontade humana, em nosso caso, as situações de risco (escorregamentos, enchentes, erosões) são associadas a intervenções humanas no meio físico-geológico, podendo, portanto, ser mitigadas ou totalmente evitadas no depender da vontade humana.

Obviamente, diante do quadro atual não há como não atender as situações emergenciais, pois o passivo geotécnico é enorme, mas é preciso “virar o jogo”, voltando à carga nas ações preventivas de planejamento, com o que evitaríamos que novas situações de risco fossem criadas, estancando então a diabólica sucessão de erros e tragédias. O que na prática significaria a aplicação da única estratégia que o bom senso técnico e gerencial indicaria para a recuperação do controle técnico sobre o crescimento urbano: “parar de errar e corrigir o errado que já foi feito”. O meio técnico brasileiro, especialmente seus geólogos, engenheiros geotécnicos, arquitetos, urbanistas, geógrafos, precisa se articular para essa indispensável correção de rumos.

Para uma devida e necessária uniformização conceitual, indispensável à boa discussão do tema, transcrevo a seguir uma proposta de definição conceitual para Carta Geotécnica e Carta de Risco. A Carta Geotécnica traz informações sobre todas as feições geológicas e geomorfológicas de uma determinada região quanto ao seu comportamento geotécnico frente a um determinado tipo de ocupação. É essencialmente um instrumento de planejamento do uso do solo. As mais comuns são as CGs orientadas à ocupação urbana. Definem as zonas que não podem ser ocupadas de forma alguma e aquelas que podem ser ocupadas uma vez que sejam obedecidos os critérios técnicos estipulados pela própria Carta. A Carta de Riscos delimita em uma área ou região as zonas ou os compartimentos submetidos a um determinado tipo de risco (por exemplo, escorregamentos) frente a um determinado tipo de ocupação (por exemplo, urbana), definindo os diferentes graus de risco e as providências necessárias associadas a cada um desses graus. Geralmente é realizada para uma situação já com problemas detectados ou acontecidos e é mais comumente um instrumento de ações emergenciais de Defesa Civil e/ou reorganização da ocupação.

* Álvaro Rodrigues dos Santos é geólogo, consultor em geologia de engenharia, geotecnia e meio ambiente, foi diretor do IPT, é o autor dos livros: Geologia de Engenharia: Conceitos, Método e Prática, A Grande Barreira da Serra do Mar, Cubatão e Diálogos Geológicos


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