A Escola de Engenharia de São Carlos e a música popular brasileira

25/06/2011 - A Escola de Engenharia de São Carlos e a música popular brasileira

SILMARA JUNY DE A. CHINELLATO*

Que a Escola de Engenharia de São Carlos, da minha USP, foi – e é – excelente, origem de várias gerações de engenheiros de sólida formação, todos sabem. Nenhuma novidade. Que, nos difíceis anos de 1964 a 1968, foi um reduto de bons e expressivos músicos – instrumentistas, cantores, compositores –, que realizou shows musicais que pouco ficaram a dever ao então contemporâneo “O Fino da Bossa”, comandado pela Regina, para sempre, Elis, poucos sabem. Conto como éramos. Uma completa troupe musical, com artistas e pessoal do apoio técnico, o melhor possível, dos também estudantes da Escola e membros do Centro Acadêmico Armando Salles Oliveira (CAASO). O que fazia eu lá, estudante do curso clássico de Limeira (SP) e, depois, estudante de direito da Faculdade do Largo de São Francisco? Integrava o elenco de convidados – “artistas” que participavam dos shows na “Semana da Engenharia”. Éramos muitos. Vínhamos de Limeira, Rio Claro, Ribeirão Preto, Araraquara, Bebedouro, São Paulo, Rio de Janeiro e outras cidades.

Primeiro, vou lembrar os convidados que já tinham certa fama , todos iniciantes: Chico Buarque, Taiguara, Sidney Miller, Don Salvador, Paulo Moura, Celso Miguel, Milton de Paula (de Ribeirão Preto, pianista de trio de alto nível – piano, bateria e baixo era a formação que marcou a época). Entre os amadores como eu: a hoje famosa Marília Gabriela, saxofonista Hamleto Stamato, depois integrante da banda de Hermeto Pascoal, pianista João Antonio Stamato, o trio dos sobrinhos de Don Salvador, os cantores são-carlenses Márcia Barnabé, de linda voz rouca, Maria Eugênia, Ginoca, Dimas, simpático sambista, Euvaldo, o pianista Nelson e trio. Integrei-me nos Encontros Musicais do CAASO por meio de meu amigo limeirense, o engenheiro Antonio Cláudio Prince Rodrigues, de saudosa memória, uma das mais inteligentes pessoas que conheci e, como eu, amante da música desde sempre.  

Falemos dos engenheiros músicos ou músicos-engenheiros e dos que trabalhavam nos bastidores, no apoio da infraestrutura, tudo feito de modo artesanal, com a pouca tecnologia que (não) tínhamos na época: montagem de palco, som e luz. Sim, havia tudo isto! Nestor Tupinambá, um grande entusiasta dos shows era dos mais dedicados e a quem devo a inspiração para escrever estas memórias. Lembro-me de vários nomes, impossíveis de esquecer, pois eram chamados o tempo todo durante os ensaios (sim, havia ensaio; eu disse que parecia mesmo “O Fino da Bossa”): João Carlos Coelho, Fernando Vilarinho, José Fernando Gullo, Ulisses Reali F. Nunes, Antonio Joaquim Correia (Quincas), Martiniano, Luiz Alberto (“Pastinha”), Rubens Gomiero (Rubinho), Tarso Dias Papa, Geraldo Cruz (Gerinha), Luis Henrique Teles (de fantástica memória, sabe tudo da atuação político-musical da Escola), Aluizio Fagundes, Gilson Vasconcelos, Guerrini, Labaki. Agora falemos dos músicos-engenheiros. O líder musical, o exímio pianista Euclides Gabriel Corrêa, nosso “maestro soberano” Clidinho, sempre sereno, comandava tudo com muita firmeza e sensibilidade. Harmonizava belos arranjos musicais, com as esperadas dissonâncias próprias da bossa nova, parecendo inspirar-se no Tamba e no Zimbo Trio, dando ao cantor e aos outros músicos, grande segurança. Na flauta e sax, Francisco Stella Chiavini, o Faninho, hoje respeitado músico profissional, encantava-nos com sua performance. No baixo, Ozien, circunspecto, imerso nos sons, causando grande inquietação no público feminino. Na bateria, o entusiasmado Sérgio Saia, são-carlense. Outros alunos se apresentaram com sucesso entre os quais o violonista Luiz Antonio Torres (Quatá).

Música da melhor qualidade, gerada antes, durante e depois dos Festivais da Record: Tom Jobim, Vinícius de Morais, Carlos Lyra (autor da minha preferida Primavera), Edu Lobo, Eumir Deodato, Chico Buarque, Geraldo Vandré, Marcos e Paulo Sérgio Valle etc. Bossa e jazz em boa parceria, inclusive na abertura do show, com o Move the Groove de David Bruebeck, que já indicava o que vinha e a que vinha. Sally’s Tomato, de Henry Mancini, também era certa, imperdível e esperada. O som que ouvi, nos shows do CAASO, não por acaso, as dissonâncias perfeitas, arranjos e harmonias, são de tal melodiosidade que hoje ainda posso ouvi-los, imersa no passado, lentamente, guiada por notas musicais a me levar a uma estrada sem fim.

Por certo, Euterpe e Minerva aplaudiriam. Eu, sim, muitas vezes. Ontem, hoje e sempre. Quando penso na cidade de São Carlos, vem-me a imagem da Escola de Engenharia. Não por sua excelência, mas pela música. Os shows de alta qualidade técnica e de interpretação fazem parte das melhores lembranças guardadas sem chaves e que me tocam. Muito, com sustenidos, bemóis e dissonâncias bem concertadas. A música ficou em mim para sempre como amálgama. Nas minhas incursões amadorísticas no cantar e também na vida profissional, como professora de direito autoral, boa simbiose entre o útil e o mais do que agradável: contato com a arte, povoada de muitos sons.

Esta crônica tem duas conclusões, ambas absolutamente verdadeiras.

1) Nós éramos felizes. E sabíamos.
2) Música é, também ... coisa de engenheiro!

*Silmara Juny de A. Chinellato é advogada e professora da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, USP


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