Novos tempos, práticas velhas (ou velhacas)

25/06/2011 - Novos tempos, práticas velhas (ou velhacas)

NELSON NEWTON FERRAZ*

Há já algum tempo venho observando os serviços de engenharia em execução, particularmente pelos poderes públicos, e algumas coisas estão me chamando a atenção. São coisas que, quando me formei e comecei a trabalhar, já se vão quase 40 anos, eram consideradas básicas e ninguém contestava. Estavam até na condição de verdades eternas, eu achava até que havia uma lei que as regia! Foi engano meu, não existia a tal lei ou, se existia, foi mudada! Mas vamos aos pontos (as tais coisas) que estão me incomodando. Não vou numerar porque pode parecer que estou classificando por ordem de importância, o que não é o caso, cada um dá mais ou menos importância conforme os seus próprios interesses ou o enfoque que ele dá ao caso. Mas vamos lá.

Valor dos serviços de elaboração de projetos, perícias, laudos etc. – Pagar pelo menor preço é o mesmo que comprar frutas “por leilão” depois que a feira terminou: só vai pegar coisa velha, muitas vezes imprestável. Quem tem conhecimento novo, tecnologia de ponta, estudou muito ou pagou caro por ela e não vai vender baratinho, quem vende baratinho é quem tem ‘sobra’ ou quem está começando, não tem experiência e quer entrar na ‘tchurma’. Ou então quem é mal intencionado (já está na tchurma e tem um esquema!), está querendo fazer uma experiência, ou tem outros interesses! Como consequência, o comprador paga pouco por coisas muito caras! Sim porque ou está adquirindo tecnologias velhas com roupagem nova ou então comprando experiências ou esquemas. Preço baixo agora tem seu custo depois!

Composição de equipes de gerenciamento e fiscalização de obras  – Este tipo de trabalho sempre foi feito por técnicos especializados, cada um na sua área, cada um na sua especialidade. Para isso eram feitas pesquisas de currículos de profissionais para se arregimentar uma equipe, muitas vezes multidisciplinar, para que todos os serviços a serem executados na obra fossem cobertos adequadamente. Já não é mais assim: agora existem técnicos (nem sempre engenheiros!) generalistas e/ou pluriespecialistas (acho que estou criando uma palavra...). É evidente que este novo profissional não sabe tudo que a soma dos que o antecederam sabiam – mas, em compensação é muito mais “econômico”. Quer dizer, é a lei das compensações: economiza-se (paga-se menos) mas, em compensação, obtém-se menos! Como a velha história da feira: mulher bonita não paga... mas também não leva! Por incrível que pareça, esta é a regra básica entre os prestadores de serviço e... por mais incrível que pareça ainda, todos aplaudem! Desde o governo até os empreiteiros, passando pelas empresas contratantes, pelos projetistas, pelos gerenciadores, pelos... pelos... Sei lá, são tantos interesses que chego a duvidar que alguém, além dos engenheiros, técnicos e usuários, sequer sintam qualquer diferença. Ah, é claro, quando ocorre algum acidente, a imprensa também gosta e lá, no fundo de sua redação, também aplaude!

Elaboração de projetos básicos e projetos executivos – Aqui a coisa está pegando: quem gosta de obras com grande visibilidade, de preferência (financeiramente) vultosas, chega aqui ao paraíso. Na escola de Engenharia e ao longo de minha vida profissional, eu aprendi que toda obra ou empreendimento, para ser bem feito (e todos eles por princípio devem ser), obrigatoriamente deve ser dividido em algumas etapas que, se não são muito bem delimitadas em suas passagens, são muito bem definidas em seus objetivos. São elas: ideia, estudo de viabilidade, projeto básico, projeto executivo e execução dos trabalhos. Explico melhor.

Ideia - Constatado um problema, uma necessidade, um ponto de evolução, alguém (ou alguéns!) tem uma ideia e daí, conversando, reunindo grupos de pressão ou dinheiro, resolvem executar uma obra. Mas será que vale a pena? Quanto custa? Quem e quantos serão beneficiados por ela? Passamos então à segunda etapa.

Estudo de viabilidade - Alguém (interessado, especialista, técnico, financista, sei lá...) chama ou é chamado para responder à essa pergunta impertinente que não quer calar: Será que vale a pena? O(s) indigitado(s), evidentemente após acerto de honorários, começa(m) a trabalhar e, após ingentes estudos, dá(ão) sua resposta final: sim, vale a pena. Claro que nunca é tão simples assim. A resposta, sim ou não, vem embrulhada em incontáveis relatórios, gráficos, fotos, depoimentos etc. Mas, já que vale a pena, a resposta foi sim, vamos à etapa seguinte.

Projeto básico - Por projeto básico entende-se: o projeto de arquitetura, desenhado em escalas altas, constituído de mapas, plantas baixas, cortes transversais e longitudinais, além das fachadas ou vistas. É integrado também por um Memorial Descritivo, detalhado ao nível de anteprojeto, e de um Orçamento Básico ou Estimativa de Custo para a execução do projeto. Esta é uma definição escolar, pedagógica – mas que reflete muito bem o espírito que deve orientar o interessado na obra (contratante ou proprietário). Ele precisa ter uma visão geral da coisa, sem muita precisão mesmo, de forma a poder propor, por si ou pelos seus assessores, alterações, ajustes, cortes ou ampliações, divisões em estágios, enfim, levar ao projeto a sua visão, a sua forma, a sua mão! Esta etapa é aquela em que, teoricamente, o proprietário da obra (ou seus prepostos) devem ter mais participação e é quando mais poderão interferir no projeto. Mas, já que tudo está a contento, vamos à etapa seguinte.

Projeto executivo - Por projeto executivo entende-se: os projetos de arquitetura, estrutural, elétrico e hidráulico detalhados, desenhados em escalas maiores ou em qualquer outra que seja mais adequada à perfeita compreensão do projeto por todas as partes envolvidas na execução da obra. O Memorial Descritivo, bem como o Orçamento Executivo que o acompanha devem ser detalhados ao nível necessário para a execução completa da obra. O planejamento deve ser completo: planejamento operacional e executivo, cronograma físico, cronograma financeiro, programação de materiais, equipamentos, mão de obra etc. Pronto! Claro que algumas partes do projeto básico (aquele do item anterior) tiveram que ser alteradas e ajustadas em função de custos, interferências, exequibilidade sei lá... existem tantos mistérios dentro de uma obra! Mas enfim está tudo pronto e podemos partir para a execução.

Execução dos trabalhos ou da obra propriamente dita - Começamos com uma concorrência, depois vem uma negociação feroz, alguns ajustes nos projetos, muita conversa e, por fim assina-se um contrato e damos início à obra. Tudo acertado, a obra transcorre na mais perfeita harmonia e na paz do Senhor. Terminada esta etapa, é só partir para o abraço! Claro que no dia certo, conforme o cronograma! Todo mundo está careca de saber que isto é lenda e não ocorre desta maneira em lugar nenhum do mundo: no mundo real, as coisas se atropelam, a ideia já vem montada pelo estudo de viabilidade, o projeto básico, às vezes, fica pronto antes da viabilidade; e o projeto executivo começa pouco antes da concorrência para a execução da obra que, por sua vez, em vária ocasiões, segue um ritmo mais lento, esperando que os projetos fiquem prontos ou sejam corrigidos. O planejamento, no mais das vezes, é feito baseado no projeto básico que, também no mais das vezes, é bastante alterado pelo projeto executivo. Na verdade, é uma grande loucura. Mas, no fim, tudo acaba bem. Pelo menos na maioria das vezes (e das obras).

E não se esqueçam do Gerenciamento e da Fiscalização que estão lá para botar mais lenha nessa fogueira: isto pode, isto não pode, isto altera, isto não altera, este sai, este fica, aceito, não aceito e assim vai. É uma briga só, do começo ao fim, ninguém se entende, cada um tem uma opinião: o problema é um só mas as soluções são dezenas, centenas... E cada um acha que a sua é a melhor, a mais econômica, a mais fácil... No fim vale a opinião do chefe: a sua solução é a melhor e é a que vai valer! São as leis do chefe: ele tem sempre razão!
As pessoas que estão nesse ramo já há algum tempo sabem que o processo todo é um caos organizado. Mas, pelo menos nas obras sérias, isso funciona. Ninguém gosta de uma obra muito organizada: ela é muito chata. Mas também ninguém gosta de uma bagunça total: é muito estressante! In medio virtus já diziam os romanos e, em se tratando de obra, eles estão totalmente certos. Por isso fizeram tantas obras pelo mundo (deles) todo! E pelo mundo todo, tornouse costume seguir, mais ou menos, bem ou mal, aquelas etapas que eu citei acima. É meio que uma regra básica e ajuda as partes a se entenderem melhor. Cada um faz a sua parte e, no final, todo mundo controla todo mundo.

Bons tempos e bons lugares aqueles. Agora, por aqui, tudo mudou, são novos tempos, estamos numa nova era! A era de Aquarius passou, agora estamos na era da galera: da galera do chefão globalizado, da galera dos lobbies organizados, da galera dos políticos mais “bem intencionados” e até da galera dos líderes (sindicais, profissionais, intelectuais e que tais) mais “bem influenciados”. E ai é uma festa, “vamos encurtar as etapas e tornar mais rápidas as negociações e assim todo mundo ganha, não é mesmo, afinal toda a galera está de acordo e quer a mesma coisa, valeu!”. Assim sendo, já que o objetivo é comum ($$!) pra que embromar, “vamos logo aos finalmente”.

Para tanto, em vez de caos organizado, “vamos organizar o caos, de forma a chegar mais rápido aos finalmente!”. E os “finalmente” são a parte mais rentável do processo, a obra! Não só rentável financeiramente, mas visual e politicamente também. E isso faz toda a diferença, não é mesmo? Afinal projetos não fazem a cabeça da plebe ignara que adora ver um tapume cheio de placas de propaganda comercial e, principalmente, política! Nessa nova era o processo se tornou muito mais simples e, claro,
muito mais rentável! Na verdade ele não tem uma linha rígida de procedimentos. Mas, em termos simplificados, funciona mais ou menos como vai abaixo.

Ideias - São como passarinhos, estão voando por aí, é só capturar uma que tenha as cores e o tamanho mais adequado aos “finalmente”.

Estudo de viabilidade - Superado! Uma vez que a ideia foi capturada, ela automaticamente já passou por essa análise. Há que se observar que estamos numa nova era e a galera está muito mais afinada com ela do que um monte de especialistas criados na era de Aquarius!

Projeto básico - Esse sim é uma etapa importante e tão importante que, quanto mais básico for o projeto, melhor. Porém é fundamental que ele seja tão básico quanto vistoso, cheio de efeitos visuais, sonoros, cores, digitalizados e aplicáveis a CDs e DVDs para que sejam democraticamente distribuídos em todos os locais que a galera tenha interesse. Porém, o mais interessante é que, segundo essa nova doutrina, este é o ponto ideal de maturação do projeto para se efetuar a concorrência e a consequente contratação. Mesmo porque, como já dito, a etapa de detalhamento se confunde com a concorrência e então – Eureka!, a solução: deixa estes detalhes para depois! Afinal não passam de detalhes, meros e aborrecidos detalhes e podem muito bem serem executados pelo contratado! Isso se ele quiser! Assim, passamos à etapa seguinte.

Execução da obra propriamente bendita, com projeto executivo (opcional) - Aí começa a parte boa da festa, pois os salgadinhos e os doces começam a ser distribuídos. Só que não são para todos de maneira igual: alguns (poucos) recebem os doces (muitos), os demais (nós) recebem os salgados (e bota salgado nisso). A própria galera reconhece que ainda existem alguma falhas nesse novo sistema, pois o processo ainda está sujeito a algumas interferências desagradáveis que retardam aqui ou bloqueiam ali, de alguns personagens muito estranhos, dos mais variados matizes: alguns pertencem a um tal de TCU (o que um tribunal tem a ver com obra?...), outros ao Ministério Público (ministério é para ministrar e não para atrapalhar, pô...). E outros ainda – aliás os piores – são o pessoal dos jornais, rádios, TVs e por aí afora. Mas, não tem problema não. Os chefes das galeras já estão criando um órgão específico para proteger as obras de interesse da galera (evidentemente o chefe será um dos membros da própria, assim é mais prático, pois ele será de confiança). Esse órgão deverá ser, é obvio, muito superior a todos os outros e terá poderes definitivos e decisivos: será o PIG – uma agência pública que será o Protetor dos Interesses Gerais. É verdade que alguns quiseram nomeá-lo de Protetor dos Interesses da Galera. Mas, dado que o pessoal da galera é muito discreto, acharam melhor o primeiro título.

E então ficamos assim! Observem todos que essas práticas são efetivadas por todos os partidos em todos os níveis de governo e de companhias estatais e até de muitas particulares... inclusive multinacionais! A moda pega! Vejam os senhores, estamos revolucionando os processos técnicos e administrativos de contratação de obras. Não demora e essa nossa tecnologia tomará conta do mundo! Viva a globalização. Mas vocês pensam que essa “tecnologia” parou por aí? Ledo engano! Os aperfeiçoamentos continuam. E só para vocês terem uma ideia, outro dia veio um sujeito aqui no Instituto de Engenharia, por suposto um reduto da boa técnica, e apresentou um esboço, ou seja, alguma coisa a mais do que uma ideia, de um trem de alta velocidade entre Rio, São Paulo e Campinas (TAV) e nos informou que em pouco tempo essa “coisa” seria colocada em concorrência!
Na verdade era pouco mais que uma linha vermelha traçada sobre uma foto do Google. Nenhum dos engenheiros que participaram do evento e depois do debate apoiou tal posição. Mas o apresentador, enviado pela ANTT, foi enfático: já estava decidido: o (que ele chama de) “projeto” seria colocado em concorrência em breve, talvez no inicio de 2010. Na verdade já atrasou e ficou para o começo de 2011. O pior é que apesar disso, dessa postergação de um ano, acho que continuamos ali com o anteprojeto do Projeto Básico, pouco mais que a ideia! Estudo de viabilidade? Esquece! Só nos resta rezar para São Longuinho, dar três pulinhos e tentar achar o Bom Senso perdido!

* Nelson Newton Ferraz é engenheiro civil, formado pelo Mackenzie em 1973, engenheiro consultor e conselheiro do Instituto de Engenharia

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