Saladas e vinhos: harmonia impossível?

carlos14/03/2012 - Saladas e vinhos: harmonia impossível?

Dizem que parentes raramente se dão bem. O vinho e o vinagre, primos, são normalmente colocados nesta classificação.

Como eu gosto muito de saladas e de vinhos, vou procurar, neste artigo, verificar até que ponto esta afirmativa é verdade.

O vinho e o vinagre nascem no mesmo berço: do mosto (suco) de uvas frescas. Embora existam diversas variações significativas no processo, podemos dizer, de forma simplificada, que o vinho é oriundo da fermentação aeróbica do mosto e o vinagre fruto da fermentação anaeróbica do mesmo produto.

Estabelecido o parentesco, fica claro o porquê da diferença organoléptica (referente ao sabor) e o uso diverso que fazemos destes dois líquidos históricos.

Não é preciso nos alongar neste assunto, embora ao menos um fato mereça ser contado: nos catecismos antigos era explicado às crianças que, quando Cristo estava agonizando e sedento na cruz, pediu a um passante que lhe desse água; e que este mau indivíduo teria lhe levado à boca uma esponja com vinagre, para intensificar ainda mais o sofrimento.

Nada mais errado do ponto de vista histórico e gastronômico. O vinagre tem enorme poder dessedante e era usado, na época, para enriquecer e higienizar a água potável. Assim o passante ofereceu-lhe o que tinha de melhor. Embora tenham decorridos 2 000 anos, sempre é tempo de tentar fazer justiça.

Muito mais difícil é a definição de “salada”, que significa simplesmente salgada. Seus ingredientes são inúmeros, e os temperos também. Vamos começar pelos mais comuns, que são o sal, o vinagre e o azeite.

Começo citando um genial ditado espanhol que diz que a salada ideal é temperada por um avarento para por o sal, por um juiz para por o vinagre e um perdulário esbanjador para colocar o azeite. Neste caso a receita popular é perfeita.

O sal, apesar de ser indispensável à vida humana, é normalmente utilizado em doses muito superiores às recomendadas, seja pela gastronomia ou pelos médicos.

Usado com parcimônia, realça o sabor do alimento. Em demasia, destrói-o. Procure ir reduzindo gradativamente a quantidade utilizada e você verá que alguns legumes (cenoura e beterraba, por exemplo) ficarão ainda mais saborosos.

Existe no mercado a chamada “flor de sal”, que nada mais é do que a camada superior que se forma nos depósitos onde a água marinha é mantida sob a ação do sol para formar o sal comum que consumimos. Este é acrescido de iodo e ensacado.

Já a flor de sal é um produto superior, usado na gastronomia não só para salgar como também como enfeite e para realçar sabores em pratos tão díspares como sushi e chocolate.

Também temos muitos sais aromatizados natural ou artificialmente. Sua harmonia na salada depende de teste prévio, pois muitas vezes seu sabor prepondera sobre os demais, estragando completamente a combinação de sabores.

Da mesma forma que só podemos chamar vinho ao fermentado das uvas, o termo vinagre só pode ser aplicado ao produto obtido do mosto das uvas. O termo significa “vin aigre”, ou seja, vinho ácido.

Na prática encontramos diversos “vinagres” feitos de outros ingredientes, como a maçã e o arroz.

Os vinagres legítimos, de vinho, podem ser acrescidos de sabores naturais de frutas (framboesa, cassis), de ervas (estragão, manjerona) ou de especiarias (alho, cebola). Da mesma forma que os sais flavorizados, seu uso depende de grande conhecimento anterior do produto.

Na função de acrescer o elemento ácido da salada, o limão pode perfeitamente substituir o vinagre.

O único limão verdadeiro é o siciliano, cuja acidez é baixa comparativamente aos demais. Ele pode ser usado nas saladas de forma bastante extensa, inclusive servido fatiado, com casca e tudo, para aromatizá-la com seu inebriante perfume.

Os outros limões que usamos no Brasil, como o thaiti, o galego, o rosa e o cravo são, na verdade, “limas ácidas”.

Eles podem ser usados, separadamente ou não, para avivar o sabor de alguns ingredientes da salada.

Gosto particularmente das saladas que contêm frutos do mar, como camarões ou lulas. Estes podem ficar marinando previamente em limões ácidos, como o cravo, dando um toque refinado de elegância ao conjunto final de ingredientes.

O vinagre é um elemento indispensável para as saladas, com a finalidade de aportar-lhes frescor e vivacidade. Por outro lado ele é, de certa maneira, inimigo do vinho. Por isto necessitamos do juiz, como diz o dito espanhol, para encontrar a medida justa. Na engenharia, chamamos isto de “solução de compromisso”.

Falemos agora no azeite, talvez o elemento mais importante da salada.

Há uma crença que quanto menor o teor de acidez melhor o azeite. Não é bem assim. A taxa de acidez mede o teor de impurezas de um azeite, mas ele pode ser melhor ou pior ostentando a mesma medida de acidez.

O que mais interessa no azeite é a qualidade das azeitonas, sua matéria-prima, da mesma forma que as uvas são primordiais no preparo do vinho. Também se analisam os azeites como o vinho, pela estrutura de sabor, aromas e retrogosto.

A extração também conta. A primeira pressão a frio (sem o uso de calor para extrair mais óleo) é geralmente a melhor – e o azeite extravirgem é sempre preferível aos demais tipos.

O que interessa é entendermos os sabores componentes do azeite. Vamos introduzir uma simplificação teórica para tentarmos aprender a harmonia dos azeites com os alimentos:

Tipo 1 – Azeites doces e maduros, com sabores oleosos e gosto de azeitona, que tendem a se harmonizar (por contraste) com saladas mais ácidas, como vinagretes ou que contenham frutos do mar. Podem também harmonizar (por concordância) com os pratos mais doces ou gordurosos, como as saladas que levam frutas, queijos ou maioneses. Exemplos de alguns azeites à venda no Brasil, desta categoria: Galo, Cartuxa Gourmet, Monsaraz, Esporão etc.

Tipo 2 – Azeites com sabores verdes e amargos, com retrogosto picante ou amargo, harmonizam (por concordância) com pratos mais amargos, como saladas de vegetais (alcachofra, espinafre, rúcula, escarola etc.). São azeites vistos mais raramente, mas que acrescem muito sabor se bem utilizados. Exemplo: Oliveira da Serra Ouro.

Tipo 3 – Azeites com aromas frutados, retrogosto suave, que harmonizam (por concordância) com saladas mais salgadas ou que tenham aromas intensos e de especiarias. Vão bem com saladas que contenham ervas frescas ou peixes salgados (atum, aliche). Exemplos: Casa Santa Vitória, Quinta do Crasto e CARM.

Só a experiência vai fazer com que você analise a estrutura dos azeites e sua melhor harmonia com os alimentos. Normalmente os países produtores possuem azeites nas três faixas de sabor apresentadas acima, e eu exemplifiquei com os portugueses que são os mais encontrados no mercado brasileiro.

A mostarda é um elemento que, por seu forte sabor, costuma atrapalhar ainda mais a harmonia da salada com o vinho. Uma boa opção é usar um molho composto por azeite, sal, limão, mostarda e acrescer mel para suavizar o conjunto.

Uma vez vistos os ingredientes principais, passemos para a harmonização das saladas com os vinhos.

O primeiro vinho a se pensar sempre junto com as saladas são os feitos com a uva Sauvignon Blanc, que, por sua elevada acidez natural, costumam harmonizar bem. Os feitos em Bordeaux, os oriundos do Loire (Poully-Fumé, Sancerre etc.), os chilenos do Vale de Leyda e San Antonio, os californianos e também, em especial, os neozelandeses que têm brutal (e maravilhosa) acidez. Estes vinhos combinam muito bem com qualquer salada com frutos do mar. São uma espécie de “genérico”. Na dúvida, sirva sua salada com um deles.

Saladas com toque doce pronunciado podem combinar com Riesling e Gewurztraminer “off dry”, ou seja, com uma pontinha de doçura. Saladas que levam fatias de pêra podem combinar também com um vinho feito com a uva Chenin Blanc, de menor acidez, e este mesmo vinho pode combinar maravilhosamente com saladas de carne de aves desfiadas.

Saladas que levam “berries” como amoras, mirtilos ou framboesas podem ter seu eco num Beaujolais, tinto frutado e sem tanino, com aromas semelhantes. Saladas que levam legumes grelhados na chapa ou na brasa podem combinar bem com tintos leves, feitos com a uva Merlot ou mesmo um Cabernet Sauvignon do Novo Mundo.

Saladas que utilizam pimentas verdes ou pimentões grelhados podem combinar com vinhos mais estruturados como um Zinfandel.

Saladas com cogumelos (especialmente grelhados) pedem vinhos tintos com baixo teor de tanino, como os feitos com a uva Pinot Noir.

Saladas com frutas secas oleosas, como nozes ou amêndoas podem se harmonizar com vinhos feitos com a uva Chardonnay, especialmente aqueles vinhos fermentados e envelhecidos em tonéis de madeira. O mesmo se dá com saladas que levam queijos curados como o Parmesão.

Saladas com queijos azuis (gorgonzola ou roquefort) precisam de vinhos com toques doces, como os já citados Riesling mais doces.

Vinhos brancos de grande acidez sempre vão bem com saladas, como os Pinot Grigio italianos, os vinhos da Rueda espanhola feitos com a castas Verdejo, os feitos com as castas Fernão Pires e Arinto em Portugal, e até mesmo os vinhos verdes. Saladas nobres, como a de lagosta servida fria (com ou sem maionese) casam bem com os Alvarinhos portugueses ou com os albariños espanhóis.

Da teoria para a prática, vejamos algumas das mais famosas saladas mundiais.

A Niçoise, à base de atum, azeitonas e anchovas, precisa de um branco bem ácido, como os provençais (a salada também se originou lá, como seu nome assegura) ou até mesmo um rosé provençal.

A Waldorf, com nozes, maçãs, salsão e uvas passas se harmoniza com um Chardonnay amadeirado, de preferência os norte americanos.

A Salada Russa, com batatas, ovos e maionese, poderia casar com um bom branco da Geórgia russa, ou, na falta deste, com um branco neutro do centro da Itália, como um Frascati ou um Orvietto.

A Caprese, que leva tomates, manjericão e mussarela de búfala, precisa de um branco aromático da Campânia ou do Sul da Itália, como os feitos com as uvas Grillo ou Inzolia.

A Caesar, uma das mais comentadas do mundo, leva alface, parmesão e croutons, também vai bem com um Chardonnay amadeirado.

Saladas japonesas, com vinagre de arroz, com frutos do mar ou algas, se harmonizam com espumantes ou na regra geral com os vinhos de Sauvignon Blanc.

Saladas tailandesas ou da culinária oriental (vietnamita, por exemplo) levam ingredientes exóticos como gengibre, coco, capim santo, mamão verde etc., necessitam os já citados Riesling e Gewurztraminer com ponta doce.

Saladas com carnes frias de boi, como roast beef e outras, precisam de vinhos ácidos, como um Chianti italiano ou um Beaujolais de poucos taninos.

Vimos que é possível, desde que suavizada em seus elementos ácido e salgado, harmonizar as saladas com os vinhos.

No caso, primos que podem conviver em paz, vinagre e vinho podem trazer felicidade ao homem comedido. Saúde para os que buscam esta sabedoria...

Ivan Carlos Regina
é engenheiro do setor de transporte público,
associado do Instituto de Engenharia
e autor do livro Vinho, o Melhor Amigo do Homem
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