As normas técnicas brasileiras: pequenos detalhes fazem grandes diferenças
25/06/2011 - As normas técnicas brasileiras: pequenos detalhes fazem grandes diferenças
Por Estellito Rangel Júnior*
As normas técnicas brasileiras são elaboradas por comissões constituídas por representantes dos consumidores, dos produtores e de entidades neutras. Ao ser elaborada uma norma técnica nacional, é fundamental que o texto descreva os requisitos mínimos para um produto ou serviço, atendendo de forma harmoniosa e consensual aos três grupos envolvidos. Ou seja, os requisitos devem atender às necessidades do consumidor, devem estar dentro da capacitação fabril do produtor e devem estabelecer para os laboratórios de ensaios os critérios que avaliarão a conformidade. Após a comissão ter concluído o texto da norma, há a etapa Consulta Nacional, onde pessoas que não participam da comissão poderão examinar o texto e tecer os comentários, já que, apesar do cuidado, alguns erros tipográficos, ou mesmo técnicos, podem ter passado despercebidos. Estes comentários são posteriormente analisados pela comissão, que decide pela inclusão dos mesmos ou não. E finalmente o projeto de norma poderá ser considerado concluído e enviado para publicação pela Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT).
Portanto, ao comprarmos uma norma, devemos esperar receber um texto claro, coerente com os Regulamentos Técnicos, e que permita sua pronta aplicação pelos profissionais responsáveis. Mas, como devemos proceder ao nos depararmos com textos como os a seguir, encontrados em normas ABNT?
1) Definição 3.18 da NBR IEC 61892-2: 2009 - baixa tensão – Conjunto de níveis de tensão utilizados para a distribuição elétrica e cujo limite superior é geralmente aceito como sendo 1 000 VCA. Comentário: tendo em vista a obrigatoriedade de cumprirmos a NR-10, a qual define como baixa tensão até 1 000 Vca e 1 500 Vcc, como justificar uma definição "geralmente aceita"?
2) Na ausência de Normas IEC – Recomenda-se que normas nacionais ou outras normas sejam seguidas" – encontrado na NBR IEC 60079-14: 2006. Comentário: tendo em vista a disposição da NR-10, que "na ausência de norma nacional, as normas internacionais devem ser seguidas", ou seja, a prioridade é dada à norma nacional, entendemos que este texto em norma ABNT afronta o disposto na NR-10, caracterizando uma não-conformidade de cunho legal.
3) Definição 3.13.1 da NBR IEC 61892-2: 2009 – Tensão extra-baixa de proteção (PELV – Protective Extra Low Voltage) sistema elétrico no qual a tensão não pode exceder os valores de tensão extrabaixa sob condições normais e sob condições de falta única, excluindo faltas à terra em outros circuitos elétricos. Comentário: esta definição está diferente da adotada pela NBR 5410, norma-referência para instalações em baixa tensão. Segundo a NBR 5410, PELV trata-se de sistema de extrabaixa tensão que não é eletricamente separado da terra, mas que preenche, de modo equivalente, todos os requisitos de um SELV (a ocorrência de uma única falta não resulta em risco de arco elétrico).
4) Nota “a” da NBR IEC 61892-2: 2009 – A tensão nominal dos sistemas existentes em 220/380 V e 240/415 V deve transformar-se, futuramente, no valor recomendado de 230/400 V. Recomenda-se que o período de transição seja o menor possível e que não exceda o ano de 2003. Comentário: este exemplo foi extraído de uma norma emitida em 2009. Como seu texto pode “recomendar” que o período de transição “não exceda 2003”?
5) Nota 1 da NBR IEC 61892-2: 2009 – Recomenda-se que, em qualquer país, a razão entre duas tensões nominais adjacentes seja inferior a dois (nota referente a uma tabela que apresenta faixas de tensões nominais para sistemas trifásicos). Comentário: a Norma ABNT é aplicável no Brasil, pois em princípio foi elaborada por brasileiros e para brasileiros. Como ela pode conter recomendações para “qualquer país”?
6) 9.3 da NBR IEC 60079-14: 2009 - Cabos – Cabos com malhas com baixa resistência à flexão (também conhecidos como cabos “superflexíveis”) não devem ser utilizados, a menos que instalados em eletrodutos. Comentário: não há esta denominação de cabos no Brasil. A especificação correta de um cabo elétrico deve referenciar a norma que define suas características construtivas.
7) Anexo I2 da NBR IEC 60079-14: 2009 – Por outro lado, é razoável para o proprietário de uma estação de bombeamento remota, pequena e bem segura, acionar a bomba com um motor do “tipo zona 2”, mesmo em zona 1, se a quantidade total de gás disponível para a explosão for pequena e os riscos para a vida e para a propriedade decorrente de tal explosão puderem ser desconsiderados.” Comentário: todos os profissionais que receberam treinamento em instalações em atmosferas potencialmente explosivas sabem que existem equipamentos apenas aprovados para uso em zona 2 e outros aprovados para uso em zona 1. Como os requisitos para equipamentos destinados a zona 2 são menos rigorosos, eles não podem ser instalados em zona 1. Surpreendentemente, porém, há um anexo em todas as normas ABNT relacionadas com instalações Ex com a orientação acima. Pelo texto, entende-se ser “razoável” instalar equipamentos inadequados e consentir que haja uma explosão, se alguém achar (talvez usando uma “bola de cristal”) que a explosão vai ser “pequenininha”. Cabe atentar que explosões “pequenininhas” podem matar quem estiver efetuando manutenção ao lado do equipamento, ou causar um desastre ambiental pelo vazamento de produtos tóxicos no meio ambiente. O princípio de projeto das instalações Ex é que a seleção de equipamentos elétricos deve ser tal que eles não se comportem como fontes de ignição. Como pode ser “razoável” colocar tal texto em todas as normas desta série, apesar dos diversos comentários contrários recebidos pelas comissões na etapa de Consulta Nacional?
8) Consulta Nacional – Consta no site da ABNT que “durante a Consulta Nacional, qualquer interessado pode se manifestar, sem qualquer ônus, a fim de recomendar à comissão de estudo autora a aprovação do texto como apresentado; a aprovação do texto com sugestões; ou sua não aprovação, devendo, para tal, apresentar as objeções técnicas que justifiquem sua manifestação. Sendo assim, é muito importante contarmos com a sua opinião sobre o conteúdo dos projetos em Consulta Nacional, para que possamos ter Normas Brasileiras que realmente representem os interesses da sociedade, bem como possam ser plenamente aplicadas e gerar todos os benefícios inerentes à normalização. Participe, dando a sua contribuição – ela certamente ajudará na melhoria da qualidade de nossos documentos.” Comentário: segundo a IEC, se um projeto receber 25% dos votos de contrários à publicação, o mesmo é considerado não aprovado, devendo ser reescrito e posteriormente, reapresentado. Porém consta que a Consulta Nacional da NBR IEC 60074-14: 2009 recebeu 10 votos de reprovação e sete votos de aprovação. Apesar disto, a comissão encaminhou o projeto para publicação.
Conclusões
Não temos espaço para apresentar aqui todas as situações de conflito nas normas brasileiras, e trouxemos apenas alguns exemplos para ilustrar as consequências de uma política de tradução ao pé da letra de normas criadas lá fora, sob o equivocado argumento de que “apenas assim o país poderia efetuar a adoção de normas internacionais”. A adoção de normas internacionais prevê o reconhecimento de situações onde a legislação local deva ser atendida, conforme consta no ISO/IEC Guide 21-1. A profusão de “notas de tradução” nas normas NBR IEC denota que o texto não foi fruto de um consenso sadio entre as partes visando o atendimento aos nossos Regulamentos Técnicos, mas simplesmente uma tradução ao pé da letra. Conforme definido nas Diretivas ABNT Parte 2, item 6.5.2, “notas” destinamse apenas a complementar o texto, não podendo ser contrárias ao mesmo. Esta Diretiva ABNT está harmonizada com a ISO/IEC Directives Part 2, porém na prática as “notas de tradução” são usadas para contrariar o texto da norma. Percebemos, lamentavelmente, que há uma defesa da tese que se “uma norma internacional contiver um erro, a norma brasileira deverá manter este erro em seu texto, sendo feita uma notificação ao organismo emissor para que ele efetue a correção”.
Tal diretriz significa que de nada adianta a experiência dos membros da comissão: o erro será oficialmente inserido na norma brasileira sem questionamentos e assim repassado aos usuários da norma, enquanto ficamos na expectativa da IEC publicar uma errata. Quando vierem a publicar – se o fizerem – nós reconvocaríamos a comissão para então emitir a mesma errata em português. Mas, como ficam as obras executadas até então? Portanto, trata-se de uma interpretação equivocada, pois nem a ISO/IEC Directives Part 2 está exigindo isto, nem a Organização Mundial do Comércio está exigindo isto, já que claramente é reconhecida a adoção “MOD” – conforme 4.3 do ISO Guide 21-1, onde temos soberania para indicar na norma brasileira os desvios necessários para atendimento à nossa realidade. Para a elaboração de uma norma ABNT, cabe à comissão analisar todo o texto da norma apontada como referência, verificar a compatibilidade com nossos Regulamentos Técnicos, com nossa tecnologia, com nosso mercado e apenas após, definir se o texto tomado como referência poderá ser adotado como uma norma brasileira IDT (idêntica) ou MOD (modificada), conforme o ISO/IEC Guide 21-1, de forma a apresentar à sociedade um texto harmonizado e coerente com nossa realidade.Textos traduzidos ao pé da letra, além de, por via de regra, conflitarem com nossos Regulamentos Técnicos (que são requisitos legais e devem ser obrigatoriamente incluídos na seção “Referências Normativas”, conforme estipulado nas Diretivas ABNT Parte 2, item 6.2.2), confundem nossos profissionais e podem levar não só a situações desagradáveis entre contratados e contratantes, como a situações de risco aos usuários.
* Estellito Rangel Júnior é engenheiro, instrutor de treinamento sobre NR-10, coordenador técnico do ESW Brasil (evento do IEEE totalmente dedicado à segurança em eletricidade), e auditor de instalações elétricas em áreas classificadas.