Mobilidade com Qualidade de Vida

27/11/2011 - Mobilidade com Qualidade de Vida

* Rogerio Belda

A vida na cidade depende essencialmente da parcela do seu espaço destinado à circulação porque quase toda atividade humana está relacionada a algum tipo de transporte. Na cidade moderna, o abastecimento de água, energia elétrica e informações rápidas circulam por redes especializadas.
Porém tudo mais, pessoas ou bens, dependem da organização do espaço físico da cidade destinado à circulação de bens e pessoas. E, cada vez mais, a qualidade de vida das populações urbanas está associada à mobilidade. É a capacidade de circular dentro das cidades, ou entre elas, que define as oportunidades reais de participação das pessoas no usufruto dos resultados do trabalho coletivo da sociedade, a par de aspectos simbólicos de status que atualmente estão associados ao transporte individual. O sociólogo e engenheiro Eduardo de Vasconcellos, em seu livro Circular é Preciso, assinala a influência da circulação urbana sobre a qualidade de vida das populações, assim como os efeitos negativos sobre a saúde e a integridade física das pessoas. Ele identifica estes efeitos como um pesado “tributo não-declarado” que as pessoas pagam devido à macroacessibilidade urbana. O Movimento Nacional pelo Direito ao Transporte (MDT) publicou recentemente um documento de 64 páginas descrevendo a mobilidade urbana nas cidades brasileiras de maior porte. O texto trata do domínio que o automóvel passou a exercer sobre o trânsito em detrimento da necessidade da população dispor de transporte público de qualidade. Considerando o desenvolvimento urbano como o aumento da qualidade de vida proporcionado à coletividade de forma perene e equitativa, temos, como principais impactos da política de circulação na qualidade de vida dos habitantes da cidade, os relativos à saúde, a integridade física dos participantes do trânsito e do transporte e, ainda, a mudança do tecido urbano – respeitada a preservação do patrimônio arquitetônico da cidade.

Mas são impactos negativos os decorrentes da insegurança e da poluição sonora e atmosférica. As melhorias que foram obtidas com os transportes mecanizados estão agora sendo perdidas devido a excessos. Fazendo um retrospecto da vida das populações urbanas ao longo do século passado, observa-se a sucessão de fases distintas. Temos a belle époque, que termina com a crise econômica de 1929, mas cujos efeitos se prolongaram até o conflito da Segunda Guerra Mundial. Este período foi seguido de uma explosão demográfica, intensa urbanização e difusão do uso de veículos
motorizados. Vivemos também uma industrialização acelerada e desigual que agora vem a ser superada por uma enorme expansão do setor de serviços.

A adaptação das cidades brasileiras para a circulação da mercadoria e da força-de-trabalho foi acompanhada de uma ampliação, concomitante e acelerada do espaço urbano para circulação do transporte individual, sob a égide do automóvel, como veículo próprio e meio de locomoção almejado por todos. Esta postura de privilégio ao transporte individual permanece ainda cercada pela aura de modernidade, mas leva as cidades, tanto no Brasil quanto no exterior, a um impasse: se todas as pessoas usassem automóvel para circular na cidade, o espaço necessário para circulação e abrigo de todas as demais atividades relacionadas à sua circulação seria maior que o espaço ocupado pela própria cidade. Algumas cidades americanas tentaram se aproximar desta condição absurda e sofreram transformações que, paradoxalmente, levaram-nas ao agravamento dos problemas que
pretendiam resolver.

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Modernamente surge, sob formas diferentes na Europa e nos Estados Unidos da América, medidas em “contracorrente” muito diversificadas. E cada uma delas, isoladamente, de efeito limitado. Porém, associadas em grande número, permitem minorar ou mesmo resolver localmente o desfecho desagradável que se aproxima. São ferramentas administrativas que se convencionou chamar de “gestão da demanda”. Mas estas medidas são complementares ao necessário direcionamento governamental para garantir a prioridade ao transporte público em relação ao transporte privado individual.
A história das maiores cidades brasileiras, tal como ocorreu em outras grandes cidades do mundo, mostra na primeira metade do Século 20 a expansão dos transportes urbanos sobre trilhos. Foram chamados de “tranvias” nos países hispânicos, “elétricos” em Portugal e de bondes no Brasil. Estes sistemas praticamente desapareceram na segunda metade do século. Em Lisboa operam várias linhas, antigas e modernas, assim como existe ainda uma linha no Rio de Janeiro. Entre Aparecida e Guaratinguetá existiu durante muitos anos uma linha de bondes que, como nas demais cidades, foi suplantada por veículos movidos a motores a explosão, alimentados com combustíveis derivados do petróleo. Tal situação já apresenta indícios de esgotamento nas nossas cidades.

O sinal revelador é o crescente congestionamento do trânsito e a impossibilidade das autoridades urbanas em prover mais espaço para circulação nas cidades existentes. Brasília foi a última cidade a ser inteiramente planejada para o automóvel e já dá mostras da impossibilidade de sua concepção para a garantia da circulação urbana. Neste aspecto a metrópole paulistana é até precursora de uma nova condição no futuro. Depois de décadas em que o transporte individual crescia em detrimento do transporte coletivo, na passagem de século a tendência se estabiliza e o transporte coletivo público mostra crescimento equivalente ao uso do transporte em veículos privados. Ou seja, se estabiliza a curva de evolução do transporte por veículos privados na divisão modal. A recente expansão da frota de automóveis nas cidades brasileiras, tal como a Esfinge, coloca os serviços coletivos
de transporte urbano diante do enigma de sobrevivência das condições atuais. O desafio é: como dar continuidade à condição de reversão do uso de transporte coletivo que estava em decadência?

Como mostrar às autoridades com capacidade de decisão, especialmente as eleitas, que estamos nos aproximando de uma visão alternativa sobre a circulação urbana diferente da existente nos tempos recentes? E, ainda, como organizar as aplicações dos recursos públicos nestes aspectos, subordinando-os à melhoria da qualidade de vida urbana? Esta é a pauta que se coloca atualmente para os governantes. E, por decorrência, também para os que batalham por melhores condições de vida para as populações urbanas. Como ref lexo, a organização da prestação dos serviços públicos de transporte passa por mudanças acentuadas.

No passado recente, a prestação de serviços de transporte urbano eletrificado, implantados por empresas concessionárias estrangeiras, foi substituída, após o colapso financeiro no após guerra, por serviços anárquicos pulverizados e por empresas públicas encarregadas de manter operando a quase-sucata recebida como serviço urbano de transporte coletivo complementando-a com serviço de ônibus. Era um esquema circunstancial impossível de alcançar uma situação de equilíbrio de resultados e sucumbiu diante da proliferação de empresas privadas de ônibus. Estas viam seu negócio
como resultado exclusivo de seu pioneirismo e esforço empresarial, sem se dar conta que exerciam um serviço público cuja titularidade é do Estado.

Este princípio, agora explícito na Constituição Brasileira, atribui ao transporte coletivo urbano o caráter de serviço essencial que pode ser exercido por empresas privadas, porém como delegadas pelo governo sob a forma de concessões a serem atribuídas mediante certames públicos de concorrência e regularizadas sob a forma de contratos. Este novo formato legal – ao qual tanto as autoridades públicas como as empresas privadas de transporte devem se sujeitar – aponta para um arcabouço jurídico de concessão de serviços que exigirá novas formas de organização institucional, incluindo a formação de agências reguladoras de serviços públicos.

Em decorrência, profissionais de um novo tipo e um novo arcabouço jurídico-institucional ainda incipiente estão por surgir. Sob esta forma nova de gestão de serviços públicos relacionam-se três tipos de agentes: o prestador do serviço, o poder concedente – que é o titular da responsabilidade de provimento –, e o usuário dos serviços como terceiro vértice deste “triângulo de relacionamento”. Este último é o mais frágil dos vértices mencionados, o que aponta para a necessidade de um ente regulador capaz de zelar pelo equilíbrio e justeza do contrato de concessão, protegendo os usuários
como a parte mais fraca deste relacionamento, zelando pela realização de contratos justos e respeitados. O principal bem tutelado por tais agências reguladoras é o serviço do ponto de vista do usuário, seja no sentido de ampliá-lo e melhorá-lo, seja no de reduzir seus custos – e seu instrumento básico de atuação é a tarifa regulada em contrato.

Outro velho aspecto que terá sabor de novo – e deve ser destacado – é a responsabilidade do governo federal na política de transporte urbano que já foi excessiva em um período autoritário, a ponto de definir tarifas dos sistemas locais de transporte, depois estimulante enquanto existiu a Empresa Brasileira dos Transportes Urbanos (EBTU), extinta por uma concepção equivocada de descentralização de responsabilidades e que, atualmente, o governo federal procura restabelecer com a criação do Ministério das Cidades, apoiado na nova legislação popularmente identificada como Estatuto das Cidades. Para que não tome a forma de intervenção na gestão local e de manipulação pela distribuição de recursos, deve ser colocado sob a administração local quando avaliados como projetos formulados tecnicamente e em conformidade com a política urbana de melhoria das metrópoles e desenvolvimento das cidades médias.

* Rogerio Belda é engenheiro formado pela Escola Politécnica da Universidade Católica do Rio de Janeiro, assessor da Diretoria de Planejamento de Transportes da Companhia do Metrô de São Paulo, membro do Conselho Diretor da Associação Nacional de Transportes Públicos (ANTP) e membro do Conselho de Desenvolvimento das Cidades da Federação de Comércio do Estado de São Paulo, foi diretor de planejamento da Companhia do Metrô de São Paulo, presidente do Conselho de Administração da SPTrans, presidente da Associação Nacional de Transportes Públicos. É professor-conferencista da Escola de Governo, em São Paulo e autor do livro Caminhos do Transporte Urbano (1994)


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