Os comitês de bacias hidrográficas no Brasil

27/11/2011 - Os comitês de bacias hidrográficas no Brasil

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JULIO CERQUEIRA CESAR NETO

Foi com grande surpresa que o engenheiro paulista natural de Santos (SP), Julio Cerqueira Cesar Neto, recebeu em 1988 a notícia de que o seu trabalho de muitos anos pela preservação dos recursos hídricos e utilização remunerada da água havia sido reconhecido por Brasília e agora fazia parte da Constituição Federal. Uma vitória conseguida graças ao apoio do então ministro das Minas e Energia Aureliano Chaves. “Para nossa surpresa ele conseguiu incorporar o projeto na Constituinte, sem nenhuma alteração. E assim nosso trabalho foi introduzido na Constituição Federal, impondo a obrigatoriedade da implantação desse sistema no Brasil inteiro, sem alteração de uma vírgula sequer!”, admira-se até hoje Cerqueira Cesar. Um ano depois, em 1989, a mesma legislação era introduzida na Constituição paulista. E logo em seguida a primeira lei regulamentar era publicada no Estado de São Paulo, antes mesmo da federal, dando-se o mesmo nos outros estados.


O movimento tomou corpo durante o governo Franco Montoro (1983/86), quando Cerqueira Cesar foi nomeado diretor de planejamento do Departamento de Águas e Energia Elétrica (DAEE). Sua responsabilidade era implementar o projeto e criar uma estrutura político-institucional para o planejamento e gerenciamento dos recursos hídricos. “O governo Montoro chegava ao seu final quando nós concluímos esse projeto – e Orestes Quércia seria o próximo governador. Foi um trabalho enorme. Nós já havíamos conversado não só com os estados vizinhos, mas também com os baianos e com os gaúchos em busca de uma articulação mais ampla – para preparar uma situação definitiva, em âmbito nacional, imune a interrupções. A ideia foi muito bem recebida, mas todo aquele esforço poderia se perder. Eu, particularmente, fiquei afastado do meu escritório por quatro anos. Não me conformaria em ver tudo correr por água abaixo, literalmente.


Tanto que escrevi um pequeno livro – Política de Recursos Hídricos - Instrumento de Mudança –, que foi publicado pela Editora Pioneira/EDUSP, para que aquelas ideias novas não se perdessem”, lembra Cerqueira, que na época projetou e liderou a criação do Sistema Integrado de Gerenciamento de Recursos Hídricos (SIGRH). Por isso, antes de se retirarem, ele e seu grupo levaram o projeto para Aureliano Chaves, que, engenheiro inteligente que era, tomou a peito a empreitada. Muitos anos antes, logo após formar-se, Julio Cerqueira Cesar já havia descortinado a importância de se identificar a água como bem público de valor econômico. A ideia era incentivar o uso racional e sustentável e distribuir o custo socioambiental pelo uso degradador e indiscriminado. Além disso, a cobrança serviria como instrumento de planejamento e gestão integrada, bem como para obter recursos para financiamento. “Fiquei aquele período no DAEE estudando o assunto. Imaginávamos – eu e minha equipe – que se restringiria ao Estado de São Paulo.” “No entanto”, prossegue, “chegamos à conclusão de que a água não tem fronteiras. Se eu fizesse um sistema para as águas de São Paulo, como ficariam as fronteiras com Minas Gerais, Mato Grosso, Paraná? Não tinha muito sentido.


Ou seja, esse projeto só seria viável em nível nacional”. E nessa direção foi conduzido o trabalho, cujas bases coincidiam com as bases políticas do governo Montoro: participação e descentralização. “Esse processo pertencia à sociedade e nunca deveria ser encampado pelo governo. Teria que ser aberto para discussão da comunidade.” Também deveria ser descentralizado, já que cada bacia tem as suas características, cabendo a cada uma delas ter os seus próprios critérios. A grande inovação consistia no princípio de que gerenciar uma bacia hidrográfica significa olhar a região como um todo, sem fronteiras municipais e, às vezes, sequer estaduais. Até então, considerava- se que o rio tinha a função de limitar estados e municípios. Ou seja, era um elemento separador. Mas o novo conceito dizia o oposto: usar a água como fator de integração, porque numa bacia hidrográfica a água interessa a todos, inclusive no uso e ocupação do solo.


E como chegar lá? “A primeira medida foi definir as bacias hidrográficas podia ser por estado da Federação, por exemplo, porque quando se tem um rio dentro de um estado ele é um rio estadual. Se ele participa de mais de um estado, trata-se de um rio federal. A mesma coisa com o município: se o rio está dentro de um município, restringe-se somente a esse município. Mas se ele passa de um município para o outro, ele é um rio estadual”, relata Cerqueira Cesar. Faltava agora encontrar a forma de organização. Decidiu-se que para cada bacia hidrográfica que fosse definida seria eleito um comitê de formação tripartite. Um terço dos membros representado pelo governo estadual, o outro pelos prefeitos dos municípios locais, e o terceiro por membros da sociedade civil. “Dessa forma integrava-se a sociedade nesse comitê, o qual seria o único responsável pelo gerenciamento. Qualquer intervenção nessa bacia caberia somente ao colegiado.” “Por outro lado”, argumenta, “se o comitê dependesse de verbas públicas, não funcionaria. Daí a cobrança pelo uso da água, um instrumento essencial, que torna o sistema absolutamente independente. Ele é autossustentável e não depende de orçamento estadual ou municipal”.


Para isso foi introduzido no SIGRHS o conceito segundo o qual o indivíduo que utiliza a água fica sujeito a uma remuneração. “A água dos rios e mananciais deixou de ser gratuita. Se a Sabesp se utiliza de um determinado rio ela tem que pagar por aquela água para o comitê da bacia hidrográfica correspondente, após receber uma outorga.” São duas cobranças: uma pela água retirada e outra no caso do usuário servir-se daquela água e devolver o esgoto ao rio. Antes ele terá que dar um tratamento a esse esgoto, pagando outro preço. É o princípio do poluidor pagador. “Poluiu, pagou.” A propósito, o ano de 2012 começa com mais uma vitória para Cerqueira: tem início, a partir de março, a cobrança pelo uso da água da Bacia do Alto Tietê, que abrange praticamente todos os municípios da Região Metropolitana de São Paulo, em número de 39. “Foi uma festa na Assembleia Legislativa, porque os deputados que estavam do meu lado perceberam a importância do que conseguimos.”